Psicologia organizacional e globalização: os desafios da reestruturação produtiva

14-05-2011 17:51

DITTRICH, Alexandre. Psicologia organizacional e globalização: os desafios da reestruturação produtiva. Psicol. cienc. prof. [online]. 1999, vol.19, n.1, pp. 50-65. ISSN 1414-9893.

 

Gostaríamos de iniciar este trabalho apontando um fato facilmente perceptível pelo analista mais atento - e já confirmado alhures (Codo, 1994a): os círculos acadêmicos da psicologia brasileira, ao que parece, nutrem um forte preconceito em relação à psicologia organizacional. Tal situação deve-se, em grande parte, às deficiências na formação do psicólogo brasileiro, provenientes de uma concepção errônea da própria Psicologia e de seus objetivos. Visto como uma espécie de "médico" ou meramente como um "profissional da saúde", o psicólogo é aquele que deve privilegiar a racionalidade clínica no exercício de sua profissão. Além de confirmar representações sociais que muitos imaginam exclusivas do senso comum, tal ponto de vista denuncia graves equívocos na concepção sobre o que venha a ser o domínio psicológico do ser humano, bem como sobre a constituição do mesmo. "Trabalho?" - alguém poderia indagar-se - "Afinal, o que isso tem a ver com Psicologia?" Tudo, desde que reconheçamos que o domínio psicológico de cada sujeito é um reflexo direto das condições materiais de sua vida - solo sobre o qual o subjetivo encontra sua gênese e torna a objetivar-se. Neste sentido, Codo (1994b) chega a posicionar as relações de trabalho como o ponto de partida privilegiado através do qual estudar o comportamento humano. De fato, o trabalho - relação humana reconhecidamente basal para o surgimento da própria civilização - nos cerca de tal forma que qualquer análise psicológica que ignore as condições de produção material da vida humana será ingênua - ou, ao menos, incompleta. O trabalho é a práxis humana por excelência. "É o trabalho, portanto, que provê identidade para o homem e o habilita a sentir-se eleito e participante da sociedade. (...) O status na organização passa a ser o referencial que qualifica a inteligência, a capacidade e a competência do indivíduo, muito mais que sua saúde mental, a qualidade de seu relacionamento familiar ou o grau em que se sente feliz" (Silva, 1992, p. 72 e 76).

Mesmo ciente de tais fatos, o autor confessa que também integrou, por considerável período de tempo, a "ala de resistência" dos acadêmicos de Psicologia em relação à área organizacional. Inicialmente, em função de dúvidas epistemológicas - afinal, se a Psicologia, por si só, encontra sérias dificuldades em estabelecer métodos seguros para a obtenção de seus "fatos", o que dizer da psicologia organizacional, que estuda uma comunhão tremendamente complexa de "subjetividades"? Em seguida, surgiram questionamentos éticos relativos à própria prática do psicólogo organizacional. Neste campo, as conclusões imediatas são as mais óbvias: trabalhando no interior do sistema capitalista, o psicólogo deve concorrer para seus objetivos. Portanto, discursos humanistas em psicologia organizacional servem, por regra, como escudo para técnicas que visam apenas a otimização da produção e o apaziguamento das intempéries surgidas na relação entre patrões e empregados. Além disso, mesmo que obtenhamos, efetivamente, benefícios para o trabalhador, o que nos garante que não estaremos apenas ocultando a este as contradições da sociedade em que vive? Em suma: não será o psicólogo organizacional apenas um reles instrumento de adaptação do trabalhador em prol da reprodução cega de uma realidade social injusta?

O autor manteve-se inabalado em seu "heroísmo", até fazer a espantosa descoberta de que não estava sozinho: o estudante que ignora a área organizacional por motivos éticos é a regra, e não a exceção:

(...) quanto mais cresce a importância da indústria na sociedade contemporânea, mais crescem as críticas que a Psicologia, principalmente no âmbito acadêmico, faz à atuação do psicólogo na indústria. Embora seja muito difícil operacionalizar estas formulações, sente-se claramente que os professores e alunos de Psicologia referem-se a esta especialidade como uma espécie de irmã menor da Psicologia, um misto de asco e comiseração comum à mãe (prendada) que se refere a uma filha que se prostituiu. (...) Sobre a crítica da função teórica do psicólogo industrial, já se transformou em lugar comum as afirmações de que estas atividades (...) são intrinsecamente reacionárias. (...) a crítica que produz a não intervenção é uma crítica caolha, covarde, que lava as mãos e se recusa em inverter o papel da ciência, que não se submete a correr os riscos do poder para tentar subvertê-lo. (Codo, 1994a)

De súbito, o tal "heroísmo" já não parecia mais tão confortável...Seria possível uma prática transformadora, um nova forma de se fazer psicologia organizacional? É viável penetrar nas entranhas do dragão para então feri-lo? O ponto de partida para responder a estas questões passa pela compreensão das relações de trabalho - objeto da psicologia organizacional. Estas vêm sendo drasticamente transformadas por uma gama de acontecimentos que, gradualmente, tornam-se "lugar comum". A este conjunto de transformações, coube uma denominação emblemática.

 

Globalização: Características e Modos de Ação

Sob o risco de repetir alguns chavões já exaustivamente conhecidos pelos estudiosos da área, lancemo-nos, brevemente, à tarefa de analisar o fenômeno denominado "globalização", bem como seus impactos sobre a política, a economia e, mais especificamente, sobre as relações de produção. Obviamente, a globalização não se reduz apenas a transformações de ordem política e econômica. Manifesta-se, também, através de mudanças culturais, sociais, e tecnológicas, todas estreitamente interligadas. Privilegiaremos, por ora, os aspectos que nos interessam mais diretamente.

 

Globalização, Ideologia e Política

É pertinente, num primeiro momento, uma avaliação das bases ideológicas que sustentam os mecanismos de ação que estudaremos neste trabalho. O fenômeno da globalização parece fundamentado pelo assim dito "neoliberalismo" - uma nova versão do liberalismo clássico, onde os tradicionais princípios de liberdade, justiça e democracia realizar-se-iam através da livre expansão da economia, como afirma Ortiz (1997, p.2): "O peso das transnacionais, a fé no mercado como elemento de salvação humana, as reformas anti-sociais preconizadas pelos Estados nacionais no nível mundial. Tudo isso, que se convencionou chamar de 'neoliberalismo', parece confundir-se com a globalização." Tal ideologia conjuga interesses de grandes bancos, de transnacionais e, com certo grau de contradições, de algumas nações ou blocos, em plano mundial. Como segundo componente do ideário da globalização, Mota (1997, p. 55) cita o "pragmatismo econômico, expresso na subordinação dos processos sociais às necessidades de reestruturação (ajustes e reformas)", sendo que este pragmatismo "neutraliza, na prática, as questões relativas aos projetos sociais". As ações conjuntas entre Estados e multinacionais dos países que comandam o processo de expansão do capitalismo foram explicitadas na Rodada Uruguai, marco do processo de globalização: "O que a Rodada Uruguai não alterou é o fato, clássico, de que, quem dita a agenda são os países ricos. (...) Por trás dos países ricos, há um número relativamente pequeno de empresas transnacionais que determinam a agenda. Não se trata de teoria conspiratória da esquerda, mas de fatos e números. O comércio entre filiais e matrizes de multinacionais representa aproximdadamente 1/3 do comércio mundial, e as exportações das multis a companhias que não são subsidiárias delas cobrem outro terço" (Folha de São Paulo, 1997a, p. 8). Ainda em relação à Rodada Uruguai, um dos principais teóricos da globalização, o economista francês François Chesnais (1997, p. 4), afirma que "os EUA e os lobbies industriais dos quais os norte-americanos são porta-vozes fizeram triunfar uma 'agenda além das fronteiras' ", na qual "teve lugar um crucial abandono de soberania dos países em favor da OMC e, por extensão, aos interesses capitalistas mais poderosos". A parceria entre Estados e corporações multinacionais é apontada também por Fiori (1997, p. 9), que afirma a existência, atualmente, de "um conhecimento suficientemente amplo sobre o papel de algumas decisões políticas fundamentais, tomadas pelos governos dos países centrais, mas sobretudo pelo governo imperial norte-americano", bem como "uma consciência cada vez mais nítida sobre o papel cumprido pelas pressões políticas dos países industrializados e dos organismos internacionais na crescente homogeneização das políticas econômicas e reformas liberais em curso nos países em desenvolvimento". Em relação a esta "homogeneização", Mota (1997, p. 58) descreve de modo mais específico a tentativa de institucionalização dos "novos objetos de consenso hegemônico, quais sejam: a desqualificação teórica, política e histórica de alternativas à ordem capitalista, a negação de qualquer mecanismo de controle sobre o movimento do capital; e a reconceituação de reivindicações históricas das classes trabalhadoras". Torna-se óbvio, portanto, que uma análise da globalização como um fenômeno puramente econômico é absurda. Pelo contrário, "o que a história nos conta é que a reestruturação do capitalismo mundial em curso, é um fenômeno simultaneamente político e econômico e que portanto se a globalização é uma obra material dos mercados, sua verdadeira direção e significado vêm sendo dados pelas opções político-ideológicas de algumas poucas potências mundiais" (Fiori, 1997, p. 10). Sobre tais fundamentos, desenvolvem-se as variadas transformações que avaliaremos a seguir.

 

Globalização e Estado

A questão do papel do Estado na nova conformação mundial é amplamente discutida. Entretanto, a maioria dos analistas -entre os quais o presidente brasileiro Fernando Henrique Cardoso (1997, p. 9) e o economista François Chesnais (1997, p. 4) - prevê um encolhimento do Estado e de seu âmbito de atuação em favor da regulação através das forças de mercado - fato que já assistimos na área econômica, incidindo, conseqüentemente, sobre as políticas sociais. O processo, porém, não é novo. "Pelo contrário", esclarece Fiori (1998, p. 159), "a idéia de um 'Estado mínimo' constitui-se, desde o século XVIII, no núcleo central da doutrina liberal. Eu diria mais: essa idéia define a própria essência utópica do projeto liberal, apontando para um tipo de sociedade onde o Estado governe o mínimo possível." No Brasil, Fiori aponta a intenção de produzir "um Estado rigorosamente mínimo - 'pequeno e forte', porém reduzido à imobilidade frente ao mundo das relações econômicas nacionais e internacionais e ao aumento da miséria e exclusão de um contingente crescente de sua população" (1998, p. 160). "Com efeito", corrobora Chesnais (1997, p. 4), "qualquer exportador pode agora questionar supostos 'entraves à liberdade de comércio', isto é, medidas tomadas pelos Estados no campo da saúde, do controle de qualidade de alimentos, da preservação ambiental etc". A diminuição dos poderes do Estado aponta, portanto, para o crescimento da influência de mecanismos económicos na determinação de políticas sociais. Essa redistribuição de poderes entre organizações e Estados é uma necessidade evidente do processo de globalização. Para ditar as regras do novo quadro político, as corporações precisam exercer sua influência através dos governos nacionais, que detém o poder sobre processos que, de acordo com seu direcionamento, podem tanto dificultar como facilitar o estabelecimento das condições necessárias à expansão mundial do capitalismo:

Enquanto a grande indústria fordista necessitava do keynesianismo, a indústria da produção flexível necessita da liberdade de mercado e da abolição de parte dos controles do Estado sobre as condições de uso da força de trabalho. Esta tendência, que já se mostra na supressão de alguns mecanismos de proteção social, é corroborada pela ofensiva de mudança na legislação do trabalho (Mota, 1997, p. 57)

Assim, cortando da própria carne, o Estado alimenta o ciclo de expansão do capital.

 

Globalização e Economia

Pode-se afirmar, de forma sucinta, que a globalização expressa uma nova onda de expansão do capitalismo, como modo de produção e processo civilizatório, em amplo nível (lanni, 1996). De fato, sob o aspecto econômico, "(...) o fim do comunismo permite globalizar de fato o capitalismo, com todas as implicações decorrentes: aumento no fluxo do comércio, de informações e de expansão das empresas multinacionais para mercados antes fechados" (Folha de S. Paulo, 1997b, p. 2).

O aspecto mais relevante deste fenômeno -e o que mais nos interessa no momento - é, sem dúvida, a interdependência crescente entre países e mercados. Este processo pode ser percebido através de diversos fenómenos atuais: a redistribuição do poder entre Estado e mecanismos reguladores de mercado; o "efeito dominó" das recentes oscilações das bolsas de valores em escala mundial; as mudanças nas relações de trabalho; a tendência crescente à consolidação de blocos econômicos e áreas de livre comércio, com planificação de tarifas alfandegárias e, em última instância, de políticas econômicas, visando, como resultado, a criação de moedas comuns entre as nações integrantes de cada grupo. (Embora os teóricos não saibam definir ao certo se os blocos econômicos apontam para uma planificação econômica mundial ou, pelo contrário, podem fortalecer-se internamente, erguendo barreiras em relação aos demais blocos, este assunto nos levaria muito além de nossos objetivos.) Intimamente relacionada com estas mudanças, a questão da distribuição da riqueza e da renda vem ganhando destaque nos últimos anos, por motivos pouco nobres:

(...) dos cerca de 180 países existentes no mundo, aproximadamente 100 deles recebem, em conjunto, algo em torno de apenas 1%do investimento direto estrangeiro. O que é apenas um indicador do gap cada vez maior, que, segundo relatório recente do Banco Mundial, separa os países ricos dos países pobres do globo. (...) do ponto de vista social, a globalização tem sido parceira inseparável de uma aumento gigantesco da polarização entre países e classes do ponto de vista da distribuição da riqueza, da renda e do emprego (Fiori, 1997, p. 11-12).

Números ainda mais graves são citados pela ONU, em seu Relatório sobre o Desenvolvimento Humano, editado em 1997:

Ano a ano o fosso que separa os incluídos dos excluídos vem aumentando: os ricos ficam mais ricos, e os pobres, mais pobres. Em 34 anos, o quinhão dos excluídos na economia global minguou de 2,3% para 1,1%. A concentração chegou ao ponto de o patrimônio conjunto dos raros 447 bilionários que há no mundo ser equivalente à renda somada da metade mais pobre da população mundial - cerca de 2,8 bilhões de pessoas. (...) O comércio mundial cresceu 12 vezes no pós-guerra e chegou a US$ 4 trilhões por ano nesta década. Mas foi também o vilão que mais acentuou desigualdades entre países ricos e pobres no processo de globalização. Com 10% da população do planeta, os países mais pobres detêm apenas 0,3% do comércio mundial. Pior: é a metade do que detinham há 20 anos. Para o conjunto dos países em desenvolvimento, a globalização impôs perdas comerciais de US$ 290 bilhões entre 1980 e 1991. Nesse mesmo período, o preço dos produtos básicos (sua principal exportação) caiu 45%. (Toledo, 1997, p. 12)

Este último dado confirma uma estratégia explicitamente adotada já durante a Rodada Uruguai: a postergação contínua de negociações sobre a abertura da competição mundial para os produtos agrícolas (que constituem o grosso da exportação dos países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento), enquanto, em contrapartida, fecham-se continuamente acordos da mesma natureza em benefício de produtos exportados, sobretudo, pelos países que regem a agenda comercial - telecomunicações, informática, etc. (Folha de São Paulo, 1997a, p. 8). Aprofundando ainda mais as discrepâncias entre as economias centrais e periféricas, o MAI - sigla em inglês para o Acordo Multilateral sobre Investimentos, promovido pela OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico, composta pelas 29 nações mais ricas do mundo) - "prevê a liberdade global e total para que as multinacionais possam até mesmo acionar legalmente os governos que, de acordo com o entendimento destas companhias, tracem políticas econômicas que privilegiem empresas nacionais e que não liberalizem absolutamente suas economias. Indiretamente, ficam seriamente afetadas todas as legislações trabalhistas, financeiras, econômicas, sociais e ambientais dos países signatários" (Stautz, 1998, p. 14). Penetrando facilmente nos mercados internacionais, os países desenvolvidos fecham suas portas, simultaneamente, à concorrência dos países periféricos, aumentando a concentração de riquezas e acelerando as já gritantes disparidades na distribuição de renda. Este é mais um dado inequívoco sobre a estreita relação que guardam entre si todas as diversas faces do processo de globalização.

As negociações sobre o comércio global, que parecem tão distantes do cotidiano do cidadão comum, exercem influência direta sobre o quadro social das nações.

Para as empresas hegemônicas, a globalização cria a possibilidade de estratégias inéditas de produção, através da análise permanente dos mercados de trabalho mundiais. Um exemplo esclarecedor dos novos parâmetros organizacionais em relação ao mercado de trabalho encontra-se na concentração do capital mundial entre as empresas multinacionais (ou transnacionais, ou globais, como também são denominadas atualmente), exímias aplicadoras do modelo global de produção. Como explica François Chesnais (1997, p. 4): "Mecanismos de integração seletiva triam aqueles países mais atrativos do ponto de vista da valorização do capital e aqueles que não o são". Precisamente nestes casos, a globalização mostra suas características mais assustadoras. Passemos a um breve exemplo deste modelo:

Com um faturamento de US$ 9,2 bilhões no ano fiscal terminado em maio de 7997, a fabricante de roupas e calçados esportivos Nike acabou se tornando, nos últimos anos, um dos melhores exemplos de uma empresa global, por sua estratégia de produção e de uso intensivo dos instrumentos de marketing. A Nike não é dona de nem sequer uma fábrica, não emprega nenhum operário, não tem nenhuma máquina. Toda a sua produção é feita sob encomenda em fábricas que pertencem a outras empresas, a partir de modelos de tênis desenhados por especialistas nos Estados Unidos. (...) A empresa nunca teve fábricas. Por isso tem condições de mudar o local de fabricação dos seus produtos com enorme facilidade se julgar que é mais vantajosa a produção em outro lugar - o que não seria possível se tivesse investido na construção e na instalação de fábricas. Nos últimos cinco anos, como resultado dessa politica, a Nike desistiu de fazer negócios com 20 fábricas na Coréia do Sul e em Taiwan, países onde os salários dos operários subiram, e passou a operar com 35 novas fábricas na China, na Indonésia e na Tailândia, onde os salários são bem mais baixos. (...) Ficou muito mais fácil tomar conhecimento sobre as condições de trabalho em um determinado país e compará-las com a situação em outras partes do mundo. (...) Qualquer tendência de elevação dos custos de produção em um determinado país pode levar a empresa a trocá-lo por um outro onde seja mais barata a fabricação de seus calçados (Franco, 1997, p. 11).

Obviamente, o privilégio de praticar esta terceirização maximizada em escala planetária estende-se apenas às próprias organizações multinacionais. Movimentos de boicote aos produtos destas organizações têm surgido nos últimos anos, como forma de explicitar o desrespeito aos diretos trabalhistas praticados pelas mesmas - como constatou a Good Works International (Franco, 1997, p. 11). Podemos, desta forma, constatar como se dá, na prática, a racionalidade da produção na nova era global, que encontra-se em franco desenvolvimento.

Em virtude desta abertura dos mercados à participação internacional, modificam-se os parâmetros de avaliação das organizações, impondo-se a satisfação de novos requisitos que possibilitem a permanência e consolidação das mesmas no novo quadro da economia mundial.

 

Globalização e Relações de Produção

Chega-se, portanto, ao ponto que mais diretamente interessa à psicologia organizacional. No âmbito das organizações, o quadro acima descrito traduz-se em novas exigências para a sustentação das empresas frente a um mercado continuamente mais competitivo, porque composto por um número de concorrentes muito maior e mais qualificado. Desta necessidade, surge a chamada "reestruturação produtiva" - que, por sua vez, demanda a "flexibilização" dos processos de trabalho, tendo como inspiração o modelo toyotista japonês, em substituição ao tradicional modelo fordista. Observa-se uma Endereço para correspondência exata entre as exigências que esta reestruturação impõe às organizações e as exigências que as organizações, por sua vez, fazem a seus funcionários. Senão vejamos: para as organizações, a atualização tecnológica torna-se imperiosa, o que gera, além do eventual desligamento do excedente de trabalhadores desnecessários ou não qualificados, a necessidade permanente de requalificação entre os funcionários remanescentes. Da mesma forma, para a organização, a competição internacional intensifica a busca por qualidade nos produtos, visando a obtenção de certificados de normatização internacional que abrem as portas ao empório global, o que gera, para o trabalhador, a necessidade de adaptar-se às normas técnicas necessárias para a obtenção dos certificados - cujos termos são ditados pelos países que comandam o processo de globalização, segundo critérios que beneficiam claramente suas próprias corporações em detrimento das "não qualificadas", conforme Fiori (1997, p. 10). Novas práticas administrativas, como o down-sizing (redução da pirâmide hierárquica ao mínimo necessário) e a terceirização (transferência de parte dos processos da organização a terceiros), somam-se à introdução de novas tecnologias produtivas e à baixa qualificação do quadro funcional na escalada do desemprego, que constitui problema crescente em nível mundial. Além do desemprego, o diretor-geral da OIT (Organização Internacional do Trabalho), Michel Hansenne (1997, p. 7), aponta para "uma tremenda diferença entre bons empregos, bem pagos, para pessoas operando em um nível internacional, e trabalhos ruins, mal pagos, para os que lidam com o mercado local".

Como parte fundamental do processo de reestruturação produtiva, é praxe exigir-se do trabalhador a inserção numa nova "cultura organizacional". Deseja-se, basicamente, que o trabalhador "tenha iniciativa, seja criativo e responsável, saiba resolver problemas, trabalhar em equipe, lidar bem com constantes inovações tecnológicas e que seja portador de alta capacidade de abstração que o predisponha a constante aprendizagem (...)" (Zibas, 1997, p. 12.3). Os princípios de motivação pregados pelos teóricos da "cultura organizacional" são tão óbvios que chega-se a ficar espantado pelo fato de não terem sido implantados há muito tempo atrás. Apesar disso, a grande maioria das empresas ainda não consegue fazer a ponte entre a retórica e a efetivação prática destas mudanças (Castioni, 1997, p. 240-241; Bemvenutti, 1998). O objetivo primordial do processo é obter o envolvimento dos trabalhadores em prol dos interesses da empresa, fazendo com que internalizem como seus os objetivos desta. Procura-se delegar a responsabilidade sobre o gerenciamento produtivo aos próprios trabalhadores - muitas vezes através da formação de grupos ou "times" de trabalho. A empresa deve ser vista como uma "família" (não raro, os funcionários passam a ser chamados de "parceiros" ou "colaboradores"), na qual todos são responsáveis pelo processo produtivo. Transmite-se ao empregado a idéia de que ele é o único responsável por sua sorte na organização: se tudo vai bem e a empresa progride, o funcionário terá sua contrapartida. Do contrário, pode ocorrer o corte de benefícios e a própria demissão, muitas vezes indicada pelo próprio grupo de trabalho, que tem a tarefa de identificar em seu meio os elementos "desviantes". (Incentiva-se o controle do grupo sobre o comportamento de cada funcionário.) A este contexto, segundo Zibas (1997), somam-se medidas adicionais, como a quebra de barreiras à comunicação efetiva entre chefes e subordinados (é comum que os pronomes de tratamento sejam abolidos e que todos venham a utilizar os mesmos uniformes); o oferecimento de recompensas - tanto materiais como simbólicas - aos trabalhadores que se destacam (abonos, promoções ou distinções honrosas); a estimulação de idéias para a otimização do processo produtivo; a diminuição de mecanismos de coerção e vigilância como demonstração de confiança no empregado (o funcionário responsabiliza-se por seu cartão-ponto; pequenos atrasos são tolerados); a abertura para a participação do empregado em decisões sobre diversos aspectos do cotidiano da organização (como a escolha do cardápio e o "controle de qualidade" da comida no refeitório da organização) e a promoção da qualificação -sobretudo instrumental - dos funcionários da organização.

Nas organizações que, de fato, conseguem implantar este sistema, há benefícios em alguns aspectos e reveses em outros, segundo o depoimento dos próprios funcionários (raramente ouvidos, mas, sem dúvida, os mais indicados para opinar sobre os efeitos da reestruturação produtiva, por constituírem o próprio foco de ação desta): são consideravelmente citados ganhos nas áreas de realização pessoal, responsabilidade, confiança mútua e auto-estima (Zibas, 1997, p. 133-134). Por outro lado, os empregados convivem com as contradições geradas pelas mudanças, nas quais cobra-se a parceria e a colaboração - freqüentemente, porém, de modo unilateral:

O desemprego, a retirada de benefícios e a subordinação destes ao desempenho da equipe, são as conseqüências mais imediatas e visíveis no quadro de implantação das inovações gerenciais. As empresas pressionam por resultados, mas tivemos a oportunidade de colher depoimentos de que as metas estabelecidas são ampliadas gradativamente tornando cada vez mais difícil seu cumprimento, o que termina por gerar desmotivação para o trabalho. Ao mesmo tempo, a ameaça de desemprego e a falta de conquistas salariais e a perda de benefícios, são elementos que servem de fator restritivo à mobilização dos trabalhadores por seus direitos e, além disto, não tem impedido que os trabalhadores, em muitos casos, terminem por aderir aos programas de qualidade. (...) Sem dúvida, o choque gerencial de mudança de abordagem da relação capital/trabalho, atinge a subjetividade dos trabalhadores" (Vasconcelos Jr. & Teixeira, 1997, p. 163).

Da mesma forma, Zibas (1997, p. 135-136) detecta certos aspectos negativos da nova ordem organizacional: "A enorme intensificação do ritmo de produção, o aumento do estresse funcional, a polivalência dos funcionários que assumem funções administrativas, de controle de qualidade, de manutenção e de limpeza, sem obter ganhos proporcionais, e o conseqüente aumento do desemprego são algumas das faces perversas da nova organização."

Torna-se evidente que há uma negligência de fatores importantes ao bem estar dos funcionários no processo de implantação da nova "cultura organizacional". Obviamente, quando o processo dá resultados, os funcionários sentem-se mais satisfeitos com a ampliação de sua participação no planejamento e execução do processo produtivo: suas opiniões são valorizadas; seu desempenho é recompensado; há relativas possibilidades de ascensão profissional; há um clima de cumplicidade (ao menos profissional) entre os membros de cada grupo de produção; há (ou espera-se que haja) maior tolerância e compreensão entre chefes e subordinados; há possibilidades de intervenção direta em diversos aspectos do dia-a-dia da organização. Em resumo, há uma relativa "humanização" do trabalho no cerne mesmo do processo produtivo. Porém, corre-se o risco de haver uma " 'naturalização' da superexploração do trabalho" (Mota, 1997, p. 56), além de uma aceitação passiva de remunerações abusivas e da gradativa retirada de mecanismos de proteção ao trabalhador, o que, de fato, vem ocorrendo maciçamente. Além disso, há o fato óbvio de que "(...) em muitas empresas, as mudanças são introduzidas na base da coerção - entra no novo esquema ou está fora da empresa" (Krein, 1997, p. 461).

Paralelamente, os trabalhadores vêm perdendo seu poder de negociação dos direitos trabalhistas e das novas exigências da reestruturação produtiva, tanto junto ao Estado como às organizações (Castro & Genoíno, 1997, p.2; Vasconcelos Jr. & Teixeira, 1997). As organizações, obviamente, consideram a reestruturação uma exigência impreterível. Assim, os sindicatos que se opõem ao processo, procurando preservar os direitos de seus integrantes, são qualificados como ignorantes, maldosos, caluniadores, inimigos da empresa e dos empregados (Vasconcelos Jr. & Teixeira, 1997, p. 155). A atuação do movimento sindical, assim como a intervenção estatal nas relações trabalhistas é, obviamente, contrária à lógica da flexibilização das relações de trabalho e à adesão dos funcionários aos objetivos da reestruturação. A diminuição do poder de barganha dos sindicatos expressa-se principalmente na nova política de organização sindical por empresa, e não mais por categoria: "As empresas estão introduzindo mecanismos para solucionar os conflitos a partir do local de trabalho. Em outras palavras, estão privilegiando o espaço da fábrica para negociar diretamente os direitos e deveres de seus trabalhadores. Com isso, procuram distanciar os funcionários dos problemas gerais da categoria e fazer com que percam a referência de lutas conjuntas de classe" (Krein, 1997, p. 469). Desta forma, eventuais movimentos de oposição às reformas podem ser prevenidos e detectados com maior facilidade. As reivindicações são negociadas diretamente entre a empresa e seus empregados, reduzindo a representatividade social dos sindicatos ao próprio âmbito da organização. Assim, acabam as lutas gerais de categorias e a solidariedade entre seus integrantes. "Por exemplo: o desempregado é carta fora do baralho para a quase totalidade dos sindicatos. O trabalhador só é representado quando está vinculado à sua base" (Krein, 1997, p. 472). Os "micro-sindicatos" competem entre si "tendo por parâmetro a busca da competitividade da empresa no mercado como forma de conquistar melhores condições de trabalho e de salário" (Krein, 1997, p. 470). Em conseqüência, o movimento sindical deixa de existir enquanto ator político e social em nível macro, para restringir-se às necessidades internas dos empregados na organização. Diminui seu poder de pressão e influência na negociação de políticas trabalhistas praticadas pela administração pública. Se a organização entra em impasse com o "micro-sindicato", este não conta mais com outras instâncias às quais possa recorrer, sendo forçado a ceder aos termos da organização.

Completamos, deste modo, um resumo de como se apresenta o contexto organizacional sobre o qual o psicólogo, com seus conhecimentos, procurará intervir. A seguir, analisaremos as possibilidades e limites que se apresentam, atualmente, para esta intervenção.

 

Nas Entranhas do Dragão: A Práxis do Psicólogo Prostituído

Um primeiro ponto deve ser ressaltado neste momento - e o leitor tem o direito de interromper a leitura se não concordar com ele: "(...) no desempenho de suas funções, o psicólogo não poderá situar seus compromissos com a empresa acima dos que o vinculam à comunidade" (Silva, 1992, p. 86). Como afirma Codo (1994 a, p. 197), "é verdade que o psicólogo industrial é um empregado do patrão, contratado para fazer frente ao operário. Por isto mesmo, o psicólogo consciente deveria estar na indústria refletindo conscientemente para tentar subverter suas funções". Inversamente, porém, pode-se afirmar - sem pudores - que o psicólogo deverá trabalhar, também, em prol dos objetivos da empresa. Não faze-lo seria tão anti-ético quanto apenas faze-lo - vide o próprio Código de Ética Profissional dos Psicólogos, em seu artigo 04 (Conselho Federal de Psicologia, 1996, p. 12) - e, ademais, fatalmente levaria à dispensa do psicólogo. Ao menos até que conquiste estabilidade, respeito e confiança dentro da organização, não será facultado ao psicólogo promover reformas amplas em prol dos empregados sem que haja uma contrapartida financeira - ao menos indireta -para a organização. Por isso, ganha importância o bom senso do psicólogo em firmar-se com paciência e humildade, visando alcançar maior liberdade de atuação. Segundo Krein (1997, p. 459), "Apesar do discurso do 'novo humanismo na empresa', baseado numa 'verdadeira experiência democrática', o que importa para ela são os resultados econômicos. As políticas na área de pessoal sofrem mudanças, seja em razão das dificuldades vividas pelas empresas, seja para torná-las mais competitivas no mercado". Ou seja: a reestruturação produtiva visa, primordialmente, o bem estar da organização, sendo o bem estar do empregado um subproduto desejável, mas não imprescindível. Tais afirmações podem soar óbvias; porém, é útil reavivá-las, para que o psicólogo organizacional saiba em que solo pisa. (De qualquer forma, causa certo alívio a constatação de que, afinal, algumas organizações começam a notar que, de fato, seu desempenho melhora quando dá-se ao trabalhador maior liberdade de interferência no processo produtivo - mesmo Elton Mayo já o dizia! Se o açoite desse melhores resultados, poucas possibilidades de intervenção restariam ao psicólogo.) Posto isto, a primeira palavra de ordem para o psicólogo preocupado com a efetiva promoção do bem estar humano nas organizações é cautela -não confundindo-a com passividade ou conformismo! Por mais nobres que sejam nossas intenções, é preciso analisar com realismo as condições de atuação do psicólogo, que ainda não são as mais favoráveis. Atente-se, primeiramente, para o fato de que o psicólogo dificilmente terá "carta branca" para intervir conforme lhe convier nas organizações, pois fará parte, inevitavelmente, de equipes multiprofissionais que, por regra, têm uma idéia estereotipada e limitada sobre a atuação do psicólogo organizacional (Borges-Andrade, 1990). Esta situação insere-se num contexto mais amplo, no qual urge a redefinição da identidade do psicólogo organizacional e a luta pela ampliação de seu poder de atuação.

A atual demanda pela implementação de uma nova "cultura organizacional" cria um campo de atuação privilegiado para os psicólogos. Nota-se a existência de profundos equívocos práticos e conceituais nesta área. Pergunta Aktouf (1993, p. 46): "(...) valores e identidade teleguiados, talvez pré-fabricados, impostos por desejo dos dirigentes, podem ser portadores e criadores de cultura convergente?" Em outras palavras: cabe chamar de "cultura" um conjunto de regras e valores que vai da superestrutura à infraestrutura? Tal problemática diz respeito ao modo de surgimento e transmissão das culturas: antes de serem internalizadas, elas devem ser vividas. Portanto, a cultura não pode nascer apenas através de regras e valores pré-definidos, mas de práticas que criem tais regras e valores. Materialidade criando subjetividade: "Para que os empregados de uma empresa possam viver unidos, formando uma família, uma única e mesma comunidade, em que todos sintam-se 'abertos', iguais e animados pelo mesmo credo, é preciso simplesmente que as condições concretas de existência na organização tenham um substrato afetivo e material real. (...) é preciso primeiro que tudo isso seja experimentado e vivido materialmente" (Aktouf, 1993, p. 75).

Desta forma, a implantação de uma nova "cultura organizacional" deve pautar-se nesta premissa. As tão requisitadas "palestras de convencimento" não bastam para a implementação das mudanças. (Note-se o absurdo de tentar "convencer" uma comunidade a adotar uma cultura!) Se as relações de produção não se modificarem concretamente, todo o trabalho do psicólogo será em vão. Além disso, a perseguição das metas desta reforma deve considerar as necessidades dos funcionários. Se o objetivo final da empresa é a lucratividade, é imperativo detectar meios de alinhar tal objetivo aos anseios do quadro funcional. Os patrões - que solicitam a implantação das mudanças -normalmente são os últimos a se integrarem à "nova cultura" (quando o fazem!), processo que exige a abdicação de práticas que não concorrem para a criação desta. Bemvenutti (1998, p. 17-18) cita o curioso exemplo do patrão que exige de seus funcionários "qualidade total" no atendimento aos clientes da empresa; porém, "o próprio presidente não oferece um 'bom atendimento' aos seus funcionários". Deve-se ficar atento, além disso, para um equilíbrio entre as exigências da "nova cultura" e as contrapartidas concretas da organização em relação aos empregados - sobretudo quanto à remuneração justa e políticas de apoio social em diversos níveis.

De fato, a organização deveria ser, como pregam as dezenas de propostas de "cultura organizacional" que inundam as cabeceiras dos administradores, um espaço de partilha, de diálogo, de comunhão, de cooperação, de justiça. Porém, é preciso deixar claro que a organização é também - e talvez fundamentalmente - um local de contradições, de conflitos - pelo menos sob o regime capitalista (Silva, 1992). A percepção deste fato pelo trabalhador também deve ser visada pelo psicólogo organizacional. O trabalhador deve situar-se historicamente como ator produtivo, como ator social. Isto implica conhecimento. Conhecimento técnico de sua função, obviamente - mas também do processo produtivo do qual faz parte, da empresa para a qual aluga sua força de trabalho, da cultura que lhe define comportamentos, da nação que lhe dita regras e das contradições que permeiam estes processos. É notório o fato de que as organizações subsidiam a educação do trabalhador somente até o ponto em que isto lhe interessa diretamente (Zibas, 1997, p. 137-138) - hábito que o psicólogo deve combater, estimulando toda a educação que amplie os horizontes e expectativas do trabalhador.

As contradições com as quais convive o empregado podem ser explicitadas, da mesma forma, pela atuação do psicólogo organizacional junto ao sindicato. Se os sindicatos por empresa são fator de refreamento do poder sindical, por outro lado favorecem o acesso do psicólogo organizacional a esta importante instituição. Neste caso, obviamente, não cabe ao psicólogo arrogar-se o papel de agente de negociação de interesses entre os trabalhadores e a organização - já que o próprio sindicato possui pessoal destacado para tanto. Entretanto, as reuniões do sindicato são uma oportunidade privilegiada para que o psicólogo entre em contato com a realidade dos empregados, a partir da qual é possível planejar intervenções nos mais diversos aspectos, dentro e fora da organização. Em nível mais amplo, o psicólogo pode concorrer para a própria reconstrução da solidariedade entre as categorias desmanteladas pela fragmentação dos sindicatos, estimulando os "vínculos inter e intra-empresas, projetando uma rede de intercâmbios e novas articulações", que "têm seu valor registrado por sinalizarem a busca de outras variantes de organização sindical, distintas - e não previstas - pela atual estrutura corporativa" (Arbix, 1997, p. 488). Este resgate da unidade sindical é primordial para que sejam retomados os ideais de justiça social que sempre nortearam os movimentos trabalhistas no Brasil - e isto inclui "um intenso trabalho com os desempregados, cadastrando-os, apoiando-os na procura de novo emprego, dando assistência para sua reorientação profissional ou para abrir seu próprio negócio" (Krein, 1997, p. 475). Certamente, o problema do desemprego estrutural, em virtude de sua gravidade no Brasil, pede uma conjugação de esforços, não só dos sindicatos, mas das organizações - prevendo políticas de requalificação dos empregados, além de assistência social aos eventuais demissionários e auxílio na recolocação dos mesmos no mercado de trabalho - e do poder público -através da geração de políticas públicas dirigidas à geração e manutenção de empregos e também à assistência aos próprios desempregados e aos trabalhadores da economia informal (Schiochet, 1998, p. 2). A pressão pela execução destas políticas deve ser intensiva e constante, pois o discurso corrente leva a crer numa progressiva abdicação de funções sociais por parte do Estado e das organizações. Porém, apesar deste discurso, não é admissível que sigamos flutuando passivamente ao sabor dos ventos globalizantes. Se o aumento da exclusão social e a queda dos direitos trabalhistas é inerente à globalização, então a globalização está errada, e deve ser repensada, discutida e negociada - não importando quão "inevitável" seja sua concretização.

 

Conclusão: Psicologia Organizacional e Cidadania (ou: Prostituição e Utopia)

Por fim, há um ponto de extrema importância que desejamos ressaltar. Se o psicólogo organizacional tem uma visão ampla de seus objetivos, perceberá facilmente que seu âmbito de atuação não pode restringir-se apenas às próprias organizações - como acabamos de demonstrar em relação à questão do desemprego. Grande parte dos problemas contra os quais a psicologia organizacional (e a própria Psicologia, enquanto prática eticamente comprometida com a justiça social) envida esforços devem ser enfrentados num contexto social mais amplo, a saber:

• A preocupante formação profissional atualmente oferecida em psicologia organizacional - e, de resto, em Psicologia -pautada em modelos idealistas, anacrônicos, irreais - profundamente equivocados na instrumentalização teórica e prática dos estudantes;

• A falta de agregação dos psicólogos organizacionais, reduzindo sua identidade profissional, seu poder de atuação nas organizações e sua representatividade social - repetindo um problema que exige os mais altos esforços dentro da Psicologia como um todo;

• Problemas sociais gravíssimos que afetam historicamente o trabalhador brasileiro, usurpando-lhe a cidadania: o desemprego, a falta de políticas de saúde, educação, lazer e habitação dignas, para citar apenas alguns exemplos. As entidades representativas da Psicologia no Brasil tem um papel fundamental na negociação destas políticas sociais, que devem mobilizar esforços não só do Estado, do empresariado ou dos sindicatos, mas de todos os segmentos organizados da sociedade.

Há dez anos atrás, Codo (1988, p. 22) fazia um apelo: "É hora de escancarar a discussão sobre saúde mental e trabalho, torná-la despudoradamente pública, política. Se surge da vida dos homens, que compareça ao mundo dos homens, pela porta da frente, sem subterfúgios". Ouvido hoje, o apelo de Codo suscita, simultaneamente, duas reações distintas: a decepção, pois que ainda não foi compreendido; e a admiração, por seu vigor e por sua impressionante atualidade. Para uma profunda reflexão sobre o assunto, reproduzo também as palavras de Celso Furtado (1998, p. 69), quando afirma que, mais até do que a globalização, "o que caracteriza a civilização atual é a sua falta de imaginação para pensar o futuro e para criar uma utopia nova". Ainda maior é a dificuldade de traduzir as novas utopias em práticas concretas, cotidianas. Normalmente, as utopias nos servem apenas como um refúgio, um acalento onírico contra as rudezas da realidade. A própria grandeza das utopias freqüentemente nos assusta, faz com que nos sintamos impotentes diante dos fortes ventos contrários. Infelizmente, as utopias não se dão por força mágica - precisam ser concretizadas no cotidiano, com paciência e perseverança. Utopias não surgem como graças repentinas, ao estilo "oito ou oitenta". Utopias medem-se por conquistas diárias, por micro-utopias. Precisamente no momento em que procuramos concretizá-las, as utopias já não nos parecem tão belas quanto em nossos sonhos. Surgem interesses a conjugar, surgem utopias divergentes, surgem ironias e alienações. Felizmente, porém, também surge, recria-se, fortifica-se diariamente nossa eterna sede por um novo significado para a fugaz jornada humana - um significado que, não sendo-nos dado de antemão, deve ser construído: passo a passo, tijolo por tijolo, dia após dia.